"Não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa". Espinoza
Desde que me conheço por gente ouço reclamações sobre o comportamento materialista das pessoas. Há anos que ouço frases como: "Hoje as pessoas estão muito individualistas"; "Hoje as pessoas estão muito egoístas"; ".....porque na época dos meus pais o mundo era tão diferente! As pessoas não pensavam tanto em ter mas em ser e hoje é o inverso. O mundo está de cabeça para baixo"

Eu tenho pensado muito nisso: será que é verdade? será que tal afirmativa tem procedência?
Por enquanto cheguei à conclusão de que não, isso não é verdadeiro.
Parece mais fruto de um senso comum equivocado aliado a um romantismo exacerbado sobre a natureza humana e um pessimismo sobre o mundo contemporâneo!
Até onde eu tenho conhecimento, o mundo antigo era regido pela escacez. O acesso ao luxo e o consumo de supérfluos era restrito às altas gamas da sociedade: aos sacerdotes, aos militares, aos atletas, aos imperadores/czares/reis e membros da respectiva corte, aos nobres, aos burgueses, aos comerciantes e etc.
Noutras palavras: os representantes das classes dominantes, os ricos, é que tinham acesso a alguma fartura, luxo e gozavam de tudo quanto seu dinheiro e prestigio pudessem dispor. Tinham poderes sobre a vida e sobre a morte de seus escravos e inimigos.
Era dessa casta que saiam: médicos, advogados, filósofos, professores e toda a casta de intelectuais da sociedade.
Quem, egresso da pobreza, tinha acesso a essas benesses?
Para a classe pobre e dominada, que sempre foi a maioria, sobrava o que, então? Esperar por uma mudança divina para ascenderem socialmente ou por uma revolução.
Sobrava aos pobres, portanto, rezar e se rebelar. Mais nada.
Quando se tinha a possibilidade de estudar as pessoas o faziam para "ser alguém na vida" e isso significava dizer que era para "terem condições financeiras" que lhes permitissem gozarem dessas benesses, terem prestigio e não para serem sábios, iluminados intelectualmente, pura e simplesmente.
Noutras palavras: "ser alguém na vida" era "ter" e não "ser"!
A revolução francesa, a revolução industrial e outros movimentos sociais mudaram as possibilidades de ascensão social, a divisão econômica e isso permitiu que mais gente tivesse acesso ao estudo e ao consumo de bens materiais superfluos. O mundo passou da escassez ao excesso.
Com isso, tudo mudou na estrutura social e forma como o dinheiro circulava de modo que muita gente não egressa de famílias tradicionais passou a ter acesso a riquezas, à cultura e à ciência mas ainda assim, o foco dessa população (inclusive a intelectualizada) sempre foi "ter" e não "ser".
Faço aqui menção a 06 obras que desvendam bem a questão e quem não leu poderá ler:
- "Biblia"
- "O tao te ching" - Lao Tsé
- "Tratado da correção do intelecto" - Baruch de Espinosa
- "A rebelião das massas" - José Ortega y Gasset
- "O Elogio da Loucura" - Erasmo de Roterdã
- "As Brasas" - Sandor Márai
Elas todas falam de como, na verdade, as pessoas sempre se esforçaram para "ter" em detrimento do "ser" (enrriquecimento intelectual e espiritual) porque "ter" sempre assegurou um lugar mais alto na escala social e, portanto, assegurou (além das necessidades básicas) o apreço dos demais, o apoio dos demais, o poder sobre os demais. Logo, "ser" sempre foi "ter".
Hoje o consumo de massa trouxe para o populacho acesso aos bens materiais que antes lhe eram restritos, inacessíveis e, somente por isso, não tinham.
Se antes poucos eram ricos e pouca gente tinha a possibilidade de "ter", enquanto muitos queriam "ter" mas não podiam "ter" já que, até mesmo, enrriquecer era para poucos; hoje muita gente pode "ter", as chances de se ficar rico saindo do absolutamente nada são grandes e todos querem (como já antes queriam) "ter" mas com possibilidades concretas de acesso aos bens materiais que, desde todo sempre, foram objeto de cobiça humana.
Há, ainda, como penso que sempre haverá, classes dominantes que terão aquilo que o povão não tem.
No passado bacalhau era comida de pobre enquanto linho e seda só tinham acesso os ricos. No passado carro era para poucos e a ralé é que comia feijoada.
O mundo dá voltas e objetos de desejo mudam mas há sempre uma gama de coisas que só uns poucos abençoados podem ter! Mas a verdade é que todos, querem ter num mundo que desde sempre estabelece equivalência entre "ser" igual "ter".
Isso não está exacerbado e nem parece ser um fenômeno contemporâneo. Todos querem ser reconhecidos por seus pares. Ninguém quer estar à margem social. E se para ser reconhecido é preciso "ter" e, por isso, para "ser" todos queremos "ter". Uns mais, outros menos...