quarta-feira, 30 de junho de 2010

Nossa truculência - Clarice Lispector

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.


Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.


Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.


Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.


Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.


A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.


E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

2 comentários:

  1. O melhor do post não foi só (como se fosse pouco) a fabulosa Clarisce, mas foi a genialidade da composição entre a arte de Clarisce e a de Ken Marcus... Parabéns, ficou ótimo!!!

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  2. Nenhuma mulher merece ser chamada de galinha ... mas um apertão bem dado no pescoço pode fazer sentido em alguns momentos ...

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